Nas semanas seguintes a queda de Bashar al-Assad, a Rússia lançou vários voos para uma base aérea no deserto da Líbia.
O objetivo de Moscou parece ser encontrar uma parada alternativa para seu crescente envolvimento militar na África – e uma maneira de manter sua presença militar no Mediterrâneo.
Por quase uma década, a base aérea de Hmeimim e a instalação naval de Tartus na costa síria serviram aos dois propósitos.
Agora, a nação norte-africana da Líbia, devastada por conflitos, é central para os esforços russos de projetar o poder no Mediterrâneo.
Dados de rastreamento de voo analisados pela CNN mostram mais de um voo por dia desde meados de dezembro — pelos gigantes aviões de transporte Antonov AN-124 de Moscou, bem como aeronaves Ilyushin IL-76 — de Hmeimim para al-Khadim, uma base perto de Benghazi, no leste da Líbia.
No início deste mês, autoridades dos EUA e do Ocidente relataram à CNN que a Rússia havia começado a retirar uma grande quantidade de equipamento militar e tropas da Síria.
O equipamento transferido pode ter incluído sistemas avançados de defesa aérea russos. A CNN viu imagens desses sistemas esperando para serem levados para fora da Síria pouco antes do início dos voos russos.
Em 28 de dezembro, um Antonov retornou da Líbia para Hmeimim.
Jalel Harchaoui, um membro associado do think tank Royal United Services Institute (RUSI) sediado em Londres, disse à CNN que houve um “aumento inegável de aeronaves russas pousando na Líbia vindas da Síria, Rússia e Belarus” nas últimas semanas.
Hmeimim tem sido o centro de onde as operações mercenárias russas na África — primeiro na República Centro-Africana e depois no Sudão, Líbia, Mali e Burkina Faso — foram sustentadas.
Presença russa na África
Ao fortalecer a presença na Líbia, Moscou pode reter capacidade suficiente para perseguir ambições mais amplas mais ao sul da África, absorvendo os novos custos associados à queda de Assad, explicou Harchaoui.
O vídeo geolocalizado mostra que pelo menos um dos aviões que chegaram recentemente a al-Khadim voou para Bamako, no Mali, onde a Rússia substituiu recentemente a influência francesa de longo prazo.
“Voos russos para Bamako via Líbia demonstram que a Rússia já se voltou para o país como uma alternativa às suas bases sírias”, afirmaram analistas do projeto Critical Threats do American Enterprise Institute em uma nota informativa.
Os voos não são consistentes com o padrão anterior de rotações do Corpo Africano Russo para Bamako, acrescentaram.
O Corpo Africano Russo, sob a égide de seu ministério da defesa, é o sucessor do grupo mercenário Wagner na África.
Os russos têm uma base em al-Khadim há vários anos, enquanto fornecem combatentes mercenários e armas para apoiar o Gen. Khalifa Haftar, o autodeclarado governante de grande parte do leste da Líbia.
A organização investigativa All Eyes on Wagner relatou no início deste ano que um complexo seguro havia sido construído perto da base para o pessoal russo em trânsito para outras partes da África.
O vice-ministro da defesa russo, Yunus-Bek Yevkurov, fez várias visitas à Líbia para consolidar laços com Haftar nos últimos dois anos.
Esse relacionamento pode se aprofundar se a marinha russa estiver de olho em um porto sob o controle de Haftar como uma alternativa à sua instalação em Tartus, na Síria.
Preocupações da OTAN
A perspectiva não está indo bem nas capitais da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
O Ministro da Defesa italiano Guido Crosetto relatou ao diário italiano La Repubblica que, “navios e submarinos russos no Mediterrâneo são sempre uma preocupação, e ainda mais se em vez de estarem a mil quilômetros de distância, eles estiverem a dois passos de nós.”
Não é coincidência talvez que há uma semana o chefe do estado-maior militar italiano, Gen. Luciano Portolano, tenha visitado Trípoli – onde os rivais de Haftar apoiados pelas Nações Unidas governam.
Segundo um alto funcionário da OTAN, a aliança defensiva de 32 membros está monitorando a atividade em Tobruk e Benghazi, na Líbia.
Um lar no Mediterrâneo para navios de guerra russos é essencial para Moscou, já que a frota do Mar Negro não tem permissão para transitar pelo Bósforo enquanto a Rússia estiver em guerra com a Ucrânia.
“A Rússia ainda não enviou navios de guerra para Tobruk, o que é muito inteligente, já que um movimento tão descarado poderia ter provocado a mobilização da OTAN prematuramente”, expressou Harchaoui.
Haftar é um líder inconstante e envelhecido em um país cronicamente dividido e volátil. “Haftar está sempre mudando de aliança, controla apenas metade do país e, aos 81 anos, não é exatamente uma figura jovem”, pontuou Ulf Laessing, chefe do Programa Sahel, na Fundação Konrad Adenauer no Mali.
“Não há acordo legal como com a Síria, e Haftar poderia a qualquer momento mostrar a porta aos russos”, acrescentou Laessing. Ele poderia explorar sua posição para exigir hardware russo mais sofisticado – que Moscou mal pode se dar ao luxo de dispensar.
De certa forma, a Líbia é um substituto pobre para a Síria. Aviões de transporte só podem chegar à Líbia a partir da Rússia se tiverem permissão para sobrevoar a Turquia, fornecendo ao presidente turco Recep Tayyip Erdogan uma moeda de troca útil.
Damasco ambivalente
Não está claro se a nova liderança da Síria está determinada a expulsar os militares russos de Hmeimim e Tartus.
O líder interino Ahmed al-Sharaa declarou em uma entrevista esta semana que o novo governo não quer que a Rússia deixe o país “de uma maneira que não se encaixe em suas relações com a Síria”.
Mas dada a trajetória incerta da Síria, Moscou vai querer proteger suas apostas em uma região de crescente importância estratégica.
“Mesmo que os novos governantes permitam que a Rússia mantenha as bases aéreas de Hmeimim e navais de Tartus, ela terá que reduzir seus níveis de tropas e logística, como depósitos de munição na Síria, pois eles não são mais necessários para dar suporte a Assad”, analisou Laessing.
Harchaoui concordou, apontando que mesmo que a Rússia mantenha alguma presença na Síria, o nível de conforto, facilidade logística e segurança que ela já desfrutou sob Assad nunca retornará.
O presidente russo Vladimir Putin ignorou a deposição de Assad, mas Laessing disse que sua queda foi um golpe real para as ambições africanas de Putin.
Os governos africanos que se inclinaram para Moscou para sua segurança podem agora pensar duas vezes sobre sua confiabilidade, o que “vai dificultar a capacidade de fechar novos acordos para os mercenários do Africa Corps”, afirmou o especialista.
“Não passou despercebido no Mali ou no Níger que a Rússia não veio em auxílio de Assad.”
Mesmo assim, a Rússia tirou uma brasa do fogo da morte de Assad, falou Harchaoui. Sua “rede logística não foi destruída nem totalmente dizimada; ela foi apenas degradada e se tornou mais custosa, mais incerta e mais instável.”