Um ano após chegar ao comando da Casa Rosada com um discurso agressivo contra o que define como “casta” política e a promessa de ruptura com a velha política e valores esquerdistas, Javier Milei mantém alta popularidade na Argentina em meio ao forte ajuste econômico aplicado por seu governo.
Embora grande parte do apoio se justifique pela queda da inflação, que passou de 25,5% em dezembro — mês da posse, no ano passado — para 2,7% em outubro, analistas apontam que em boa medida a aprovação do presidente também se deve ao seu sucesso em manter uma imagem de ruptura com um passado de falta de respostas para os problemas cotidianos da população.
“Milei conseguiu gerar um núcleo de apoio que tem mais a ver com a aversão à velha política do que com o apoio efetivo à sua figura. Havia muita exaustão com como, por 30 anos, essa política não deu mais que problemas. Ele consegue constituir uma frente social que diz não a isso e exige uma mudança”, avalia a cientista política Lara Goyburu.
Uma das sustentações desse discurso está na quantidade de mudanças no governo desde o início do mandato de Milei. Já são cerca de 100 substituições, por demissões ou renúncias, desde dezembro, segundo levantamento do cientista político argentino Pablo Salinas.
Entre elas, estão a de três ministros — inclusive a da chanceler Diana Mondino — e a do chefe de gabinete, cargo equiparável ao do ministro-chefe da Casa Civil no Brasil.
“Isso simbolicamente, para a sociedade, significa muito, que nenhum servidor se mantém no cargo se contradiz ou coloca em risco o que o presidente diz. É rapidamente retirado, e talvez aí esteja funcionando a ideia de que vieram mudar as coisas”, analisa Goyburu.
Segundo ela, uma avaliação mais profunda leva a identificar a manutenção de atores em posições de influência, mas “em termos discursivos e de construção de uma narrativa” isso fica em segundo plano.
O governo Milei manteve uma imagem positiva de 42% a 45% durante seu primeiro ano, com um salto no último mês, quando chegou a 47%.
Os dados são do instituto de pesquisa Zuban Córdoba y Asociados, que atribui o bom índice principalmente aos resultados econômicos, apesar da pior percepção em relação à transparência, segurança e educação pública.
O instituto também aponta que o discurso libertário não teve alta aderência na sociedade, que combina “expectativas positivas do rumo da economia” com “negação de outros temas de agenda”, como a forma de lidar com a imprensa — frequentemente insultada pelo presidente — e os “desatinos em termos de política exterior”.
Já o instituto de pesquisa Poliarquía situa a aprovação de Milei em 56%, constatando que o índice é similar à porcentagem dos votos obtidos por ele no segundo turno eleitoral, refletindo uma manutenção do apoio desde então.
Mudança na política externa
Além do alinhamento automático com os Estados Unidos com Israel, conforme anunciado já em campanha, Milei surpreendeu nos últimos meses com decisões sobre política externa.
Em outubro, o presidente argentino demitiu sua chanceler, Diana Mondino, após a Argentina votar na Organização das Nações Unidas contra o embargo econômico a Cuba.
Paralelamente, o governo argentino anunciou uma auditoria no ministério das Relações Exteriores, para identificar funcionários de carreira que teriam, na avaliação da atual administração, agendas “inimigas da liberdade”.
Houve passos já previsíveis, como o alinhamento ao presidente eleito dos EUA, Donald Trump, e a Israel, a aproximação com Elon Musk — foram quatro encontros com o empresário desde que Milei chegou ao poder —, e duras críticas ao governo venezuelano, a ponto de que o corpo diplomático argentino fosse expulso de Caracas.
Mas ao esperado, somaram-se polêmicas inesperadas: o confronto com o primeiro-ministro espanhol Pedro Sánchez, que levou Madri a retirar sua embaixadora de Buenos Aires, a saída da delegação argentina da COP29, do Azerbaijão, e a resistência argentina a diversos pontos de consenso para os demais países do G20, em relação a gênero, taxação dos super-ricos e de medidas de responsabilidade digital contra “discurso de ódio”.
A alegação do governo Milei é que sua gestão irá abandonar a neutralidade contra o que define como a “implementação da Agenda 2030”, da Organização das Nações Unidas com metas para o desenvolvimento sustentável, que segundo o presidente argentino é um programa esquerdista que “afeta a vida, a liberdade e a propriedade das pessoas”.
Apesar de discursos mais duros, houve pragmatismo em muitas decisões, como na aproximação com a China, depois de na campanha ter dito que não negociaria com o país liderado pelo Partido Comunista, e na assinatura, a contragosto e após gerar muita dor de cabeça para diplomatas dos demais países, da declaração final do G20.
Milei não se desculpou de insultos que já fez sobre o Luiz Inácio Lula da Silva, mas evitou ofender o presidente brasileiro em sua ida à Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC) em Balneário Camboriú.
Ele também foi à Cúpula do G20 organizado no Brasil e esteve no recente anúncio do acordo de livre comércio entre o Mercosul — bloco do qual é crítico — e a União Europeia, na semana passada.
“Milei aumentou sua atuação na política externa, tendo cada vez mais incidência e com um discurso mais extremo conforme foi encontrando seu papel internacional de líder libertário. Mas assim como faz na política interna, o discurso é mais extremo do que os fatos”, avalia Lourdes Puente, diretora da Escola de Política e Governo da Universidade Católica da Argentina.
Para ela, o presidente argentino teve que equilibrar seu discurso para atender aos seus interesses econômicos.
“Ele retrocede um pouco porque o Ocidente, a que ele diz se alinhar, o ‘obriga’ a não se opor a tudo. Mas com tudo que não afetar a economia, ele vai continuar se opondo, porque o discurso extremo é o que o coloca como líder global desse olhar anti-sistêmico”, diz.
“Tudo o que for discurso político e ideológico ele extrema, por servir ao seu personagem. Mas, na prática, ele se move de acordo com seu interesse de desregulação econômica e aos alinhamentos vinculados aos novos atores financeiros tecnológicos”, diz, citando os diversos encontros de Milei com Musk.
Luta contra o kirchnerismo
Internamente, a radicalização se viu tanto na dissolução de ministérios, logo ao chegar no governo, como na redução de políticas públicas de gênero, afirmando que essas não combatiam a violência nem garantiam paridade.
Milei não avançou, no entanto, na proposta de um plebiscito sobre o aborto até a 14ª semana de gestação, hoje legalizado na Argentina e ao qual é abertamente contrário.
Com uma oposição debilitada e ainda sob a liderança da ex-presidente Cristina Kirchner— que recentemente teve sua sentença a seis anos de prisão, por suposta corrupção, confirmada — e com a desaceleração da inflação, Milei tem conseguido avançar no que considera ser uma “batalha cultural”.
“Se as condições de contexto internacionais não o surpreendem negativamente e se o esquema econômico resiste, as perspectivas eleitorais para o governismo são positivas”, avalia em seu último relatório Daniel Zovatto, presidente da Latam Assessoria Estratégica 360.
Para ele, no entanto, há uma adesão pragmática da sociedade, e não necessariamente uma guinada à direita dos argentinos.
“É cedo para dizer se este processo significará uma mudança radical do sistema de valores histórico da sociedade argentina”, conclui Zovatto sobre a era Milei.